Recentemente,
meu incansável hábito de defender meus filmes e livros como se fossem filhos
acabou por me colocar em um debate sobre As Horas – meu filme preferido de
todos os tempos, aquele que vejo algumas vezes por ano e vou correndo pegar o
DVD quando o dia está ruim e eu preciso de duas horinhas em posição fetal
tentando lembrar o sentido da vida. A discussão em questão, muito além da
qualidade do filme, abordava um ponto que, para mim, foi ainda mais crucial:
quão depressivo é As Horas? Por que um filme que parece tão pesado para todo
mundo me passa uma leveza tão grande? Foi aí que percebi: eu, que adoro
escrever sobre os filmes que me comovem, nunca tinha conseguido escrever sobre
aquele que me comoveu acima de todos os outros.
Ironicamente, optei por escrever sobre
ele no mesmo dia em que vi As pontes de Madison, outro filme igualmente
triste e igualmente bonito, que me parece, de alguma forma, dialogar com certas
questões que As Horas levanta. Mas o que é exatamente que une essas quatro
mulheres (as três de As Horas e a Francesca de As pontes), o que faz com que os
seus dramas nos toquem de tal forma?
Em um primeiro momento, o elo imediato
que fiz foi entre Francesca e Laura Brown. Nas duas, a posição de dona de casa,
a vida perfeitamente estruturada e um desejo por largar tudo e ir embora. A
origem desse desejo e a forma como ele é conduzido, é claro, diferem – e muito
– entre as duas. Laura tenta arduamente interpretar o papel da mulher
tradicional, da mãe e esposa, que faz das tarefas domésticas sua especialidade,
mas em momento nenhum se sente realmente pertencer àquele universo. Laura não
se encaixa e se culpa por não se encaixar, chegando ao ponto de cogitar a ideia
de terminar com a própria vida. Mas, levada ao limite de sua própria
infelicidade, a saída acaba sendo a fuga, o abandono daquilo que não parece ser
seu (o que, para os outros, será encarado como crueldade, mas, para ela, era
simplesmente a única saída possível). “Viver aquilo era a morte”, ela diz ao
final do filme, “eu escolhi a vida”.
Enquanto Laura é tragada para
fora, cedendo à tentação ao invés de resistir a ela, Francesca faz um movimento
inverso. O lugar de mãe e esposa também não era exatamente o que ela havia
planejado para sua vida, mas é um lugar que ocupa bem, um lugar que ela veste
de tal forma que já não consegue se dissociar dele – nem quando o amor aparece,
tentando arrancá-la da vida que até então levava. As pontes de Madison é um
filme sobre escolha, sobre aquele ínfimo segundo em que ela pode sair do carro
e ir correndo atrás dele ou pode ficar, sobre vivenciar esse ínfimo segundo
sabendo que ele vai mudar radicalmente todos os segundos e horas e anos seguintes.
Mas como
não retornar, de novo, à última fala de Laura Brown em As Horas? “O que
significa se arrepender quando você não tem escolha? A questão é o quanto você
pode suportar.” Até que ponto uma escolha é uma escolha? Até que ponto é
possível culpar Laura por ter abandonado os filhos, se a sua atitude de ir
embora foi puramente a única atitude possível naquele momento? Quando está se
afogando, uma pessoa é capaz de puxar outra e afogá-la junto, pelo simples
instinto de salvar a si mesmo. Em certos momentos, não há escolha, há apenas o
que pode ser feito.
Nas duas outras mulheres – Clarissa e
Virginia – também encontramos vestígios da mesma inadequação sofrida por Laura,
o mesmo desencontro entre a vida que se almeja e a vida que se vive. Virginia, envolvida
com a escrita de seu livro e seus próprios diálogos interiores, tampouco ocupa
com maestria o lugar de dona de casa, o lugar de esposa, a dar ordens práticas
para as empregadas, controlando o cardápio da casa e gerenciando a vida
doméstica, como se esperava das mulheres da época. Pelo contrário:
constantemente remetida a Londres, às cidades grandes e sua movimentação, ou
até mesmo aos cenários e personagens do livro que está escrevendo, Virginia –
também levada ao limite de sua infelicidade – é pega pelo mesmo desejo de fuga,
pela mesma escolha entre a vida e aquilo que define como sendo a morte (ou
seja, a infelicidade que estava experimentando). Entre um e outro, a escolha é
pela entrada no rio com as pedras nos bolsos dos vestidos.
Já Clarissa (interpretada, assim como
Francesca, pela maravilhosa Meryl Streep) aparece como uma espécie de versão
contemporânea da Mrs. Dalloway que Virginia escreve. Clarissa e as festas que
dá para “cobrir o silêncio”, Clarissa e as flores que camuflam o cheiro da
doença de Richard, Clarissa e a necessidade de falar sobre o trivial para
afundar as questões mais importantes. Além de aparecer como uma Mrs. Dalloway
contemporânea, Clarissa também simboliza uma espécie de ponto de encontro entre
Virginia e Laura – tendo a sua vida de alguma forma entrelaçada ao livro
escrito pela primeira e amorosamente ligada ao filho da segunda. É ali, no
tempo de Clarissa, que se dará o diálogo em que Laura fala, pela primeira vez,
sobre o abandono do marido e dos filhos, sendo também a primeira vez em que se
vê diante da escolha feita anos atrás, do peso dessa escolha e tudo que se deu
a partir dela.
Mas, diferindo de Virginia e Laura, Clarissa
não enfrenta um momento de escolha, mas sim o momento posterior a ela. Entre a vida
que poderia ter tido com Richard (seu amante da juventude) e a vida atual com Sally
e a filha, fica o inquietante “e se?”,
a constante sensação de que, com Richard, o trivial daria lugar a momentos
incomensuráveis, a uma felicidade maior, que transcenderia o comum cotidiano de
sua vida atual. Em um diálogo com a filha, Clarissa chega a relembrar um
momento do passado em que havia um forte “senso de possibilidade”, momento em
que ela teria pensado “esse é o começo da felicidade”, sem saber que, sim,
aquela era a felicidade propriamente dita.
Assim como As pontes de Madison, também
As Horas é, no fim das contas, um filme sobre escolhas. Sobre o desencaixe
entre a vida que se deseja e a vida que se vive e – mais ainda – sobre se
recusar a aceitar uma vida que não seja a desejada. É possível morrer, Virginia
diz em certo momento (e Laura ouve e repete e concorda); é possível morrer,
assim como é possível optar por outras saídas, e, seja qual for a escolha, há
de se bancar o custo dela. Particularmente, entre suicídios e crises, eu me
recuso a qualificar As Horas como um filme depressivo. Exatamente porque, mesmo
depois de Virginia ter entrado no rio e Richard ter pulado da janela, mesmo
depois do abandono e da festa transformada em enterro, mesmo depois do
arrependimento e do choro no chão da cozinha, mesmo depois de tudo, existe a escolha, existe o é possível escolher. Olhar
a vida no rosto, como diz Virginia, olhá-la pelo que ela é, e decidir, então, o
que queremos fazer dela. Isso há de ser algum consolo. E nisso há de haver uma
leveza. Insustentável, às vezes, mas também bonita.