Das horas às pontes e vice-versa

7/13/2015












 



Recentemente, meu incansável hábito de defender meus filmes e livros como se fossem filhos acabou por me colocar em um debate sobre As Horas – meu filme preferido de todos os tempos, aquele que vejo algumas vezes por ano e vou correndo pegar o DVD quando o dia está ruim e eu preciso de duas horinhas em posição fetal tentando lembrar o sentido da vida. A discussão em questão, muito além da qualidade do filme, abordava um ponto que, para mim, foi ainda mais crucial: quão depressivo é As Horas? Por que um filme que parece tão pesado para todo mundo me passa uma leveza tão grande? Foi aí que percebi: eu, que adoro escrever sobre os filmes que me comovem, nunca tinha conseguido escrever sobre aquele que me comoveu acima de todos os outros.

Ironicamente, optei por escrever sobre ele no mesmo dia em que vi As pontes de Madison, outro filme igualmente triste e igualmente bonito, que me parece, de alguma forma, dialogar com certas questões que As Horas levanta. Mas o que é exatamente que une essas quatro mulheres (as três de As Horas e a Francesca de As pontes), o que faz com que os seus dramas nos toquem de tal forma?

Em um primeiro momento, o elo imediato que fiz foi entre Francesca e Laura Brown. Nas duas, a posição de dona de casa, a vida perfeitamente estruturada e um desejo por largar tudo e ir embora. A origem desse desejo e a forma como ele é conduzido, é claro, diferem – e muito – entre as duas. Laura tenta arduamente interpretar o papel da mulher tradicional, da mãe e esposa, que faz das tarefas domésticas sua especialidade, mas em momento nenhum se sente realmente pertencer àquele universo. Laura não se encaixa e se culpa por não se encaixar, chegando ao ponto de cogitar a ideia de terminar com a própria vida. Mas, levada ao limite de sua própria infelicidade, a saída acaba sendo a fuga, o abandono daquilo que não parece ser seu (o que, para os outros, será encarado como crueldade, mas, para ela, era simplesmente a única saída possível). “Viver aquilo era a morte”, ela diz ao final do filme, “eu escolhi a vida”.

Enquanto Laura é tragada para fora, cedendo à tentação ao invés de resistir a ela, Francesca faz um movimento inverso. O lugar de mãe e esposa também não era exatamente o que ela havia planejado para sua vida, mas é um lugar que ocupa bem, um lugar que ela veste de tal forma que já não consegue se dissociar dele – nem quando o amor aparece, tentando arrancá-la da vida que até então levava. As pontes de Madison é um filme sobre escolha, sobre aquele ínfimo segundo em que ela pode sair do carro e ir correndo atrás dele ou pode ficar, sobre vivenciar esse ínfimo segundo sabendo que ele vai mudar radicalmente todos os segundos e horas e anos seguintes.

Mas como não retornar, de novo, à última fala de Laura Brown em As Horas? “O que significa se arrepender quando você não tem escolha? A questão é o quanto você pode suportar.” Até que ponto uma escolha é uma escolha? Até que ponto é possível culpar Laura por ter abandonado os filhos, se a sua atitude de ir embora foi puramente a única atitude possível naquele momento? Quando está se afogando, uma pessoa é capaz de puxar outra e afogá-la junto, pelo simples instinto de salvar a si mesmo. Em certos momentos, não há escolha, há apenas o que pode ser feito.

Nas duas outras mulheres – Clarissa e Virginia – também encontramos vestígios da mesma inadequação sofrida por Laura, o mesmo desencontro entre a vida que se almeja e a vida que se vive. Virginia, envolvida com a escrita de seu livro e seus próprios diálogos interiores, tampouco ocupa com maestria o lugar de dona de casa, o lugar de esposa, a dar ordens práticas para as empregadas, controlando o cardápio da casa e gerenciando a vida doméstica, como se esperava das mulheres da época. Pelo contrário: constantemente remetida a Londres, às cidades grandes e sua movimentação, ou até mesmo aos cenários e personagens do livro que está escrevendo, Virginia – também levada ao limite de sua infelicidade – é pega pelo mesmo desejo de fuga, pela mesma escolha entre a vida e aquilo que define como sendo a morte (ou seja, a infelicidade que estava experimentando). Entre um e outro, a escolha é pela entrada no rio com as pedras nos bolsos dos vestidos.

Já Clarissa (interpretada, assim como Francesca, pela maravilhosa Meryl Streep) aparece como uma espécie de versão contemporânea da Mrs. Dalloway que Virginia escreve. Clarissa e as festas que dá para “cobrir o silêncio”, Clarissa e as flores que camuflam o cheiro da doença de Richard, Clarissa e a necessidade de falar sobre o trivial para afundar as questões mais importantes. Além de aparecer como uma Mrs. Dalloway contemporânea, Clarissa também simboliza uma espécie de ponto de encontro entre Virginia e Laura – tendo a sua vida de alguma forma entrelaçada ao livro escrito pela primeira e amorosamente ligada ao filho da segunda. É ali, no tempo de Clarissa, que se dará o diálogo em que Laura fala, pela primeira vez, sobre o abandono do marido e dos filhos, sendo também a primeira vez em que se vê diante da escolha feita anos atrás, do peso dessa escolha e tudo que se deu a partir dela.

Mas, diferindo de Virginia e Laura, Clarissa não enfrenta um momento de escolha, mas sim o momento posterior a ela. Entre a vida que poderia ter tido com Richard (seu amante da juventude) e a vida atual com Sally e a filha, fica o inquietante “e se?”, a constante sensação de que, com Richard, o trivial daria lugar a momentos incomensuráveis, a uma felicidade maior, que transcenderia o comum cotidiano de sua vida atual. Em um diálogo com a filha, Clarissa chega a relembrar um momento do passado em que havia um forte “senso de possibilidade”, momento em que ela teria pensado “esse é o começo da felicidade”, sem saber que, sim, aquela era a felicidade propriamente dita.

Assim como As pontes de Madison, também As Horas é, no fim das contas, um filme sobre escolhas. Sobre o desencaixe entre a vida que se deseja e a vida que se vive e – mais ainda – sobre se recusar a aceitar uma vida que não seja a desejada. É possível morrer, Virginia diz em certo momento (e Laura ouve e repete e concorda); é possível morrer, assim como é possível optar por outras saídas, e, seja qual for a escolha, há de se bancar o custo dela. Particularmente, entre suicídios e crises, eu me recuso a qualificar As Horas como um filme depressivo. Exatamente porque, mesmo depois de Virginia ter entrado no rio e Richard ter pulado da janela, mesmo depois do abandono e da festa transformada em enterro, mesmo depois do arrependimento e do choro no chão da cozinha, mesmo depois de tudo, existe a escolha, existe o é possível escolher. Olhar a vida no rosto, como diz Virginia, olhá-la pelo que ela é, e decidir, então, o que queremos fazer dela. Isso há de ser algum consolo. E nisso há de haver uma leveza. Insustentável, às vezes, mas também bonita.


Lars, Bataille e outras pequenas mortes¹

1/25/2014





É sempre difícil escrever sobre um filme para o qual se criou muita expectativa. Aliás, é difícil assistir a um filme para o qual se criou muita expectativa. A versão imaginada nunca bate com a versão real e as nossas projeções acabam, na maioria das vezes, se sobrepondo - em termos de preferência - à obra propriamente dita. Ninfomaníaca poderia, facilmente, ter se encaixado nessa categoria, já que eu venho antecipando o filme faz mais de um ano, mas, de alguma forma, Lars von Trier conseguiu subverter as minhas próprias projeções e me garantiu uma experiência, no mínimo, interessante. Considerando que essa é apenas a parte 1, fica difícil fazer um comentário que não seja, por essência, um semi-comentário, então prefiro falar de algumas questões soltas que me chamam a atenção ao invés de desenvolver um texto completo (o que só seria possível depois de ambos os volumes vistos).


1) Por um lado, e antes de falar do que considero mais importante, é preciso dizer que incomoda um pouco a obviedade da estrutura narrativa (cronológica, pautada por uma excessiva necessidade de imagens para ilustrar os acontecimentos, não deixando muito espaço para a imaginação do próprio espectador). Inevitável lembrar de Dogville que, mesmo apresentado em capítulos e sendo auxiliado por uma narração, desafia e exige do espectador a cada segundo, não se sujeitando, em momento algum, às saídas mais óbvias. Também as metáforas utilizadas por Seligman cansam não apenas por serem, em geral, fáceis, mas - principalmente - pela frequência das interrupções.

2) As metáforas, no entanto, acabam por desvelar o que eu enxergo como a dicotomia principal do filme (e de muitos outros filmes de Von Trier): masculino x feminino, ordem x caos. No caso de Ninfomaníaca, a associação entre a mulher e o caos e entre o homem e a ordem é afirmada em dois aspectos: as mãos de Jerôme (firmes, fortes, observadas por Joe conforme ele organiza os objetos, causando nela a vontade de ser um daqueles objetos); e os comentários que Seligman faz durante a narrativa da personagem, como se, de certa forma, tentasse colocar ordem em seu relato, criando pontos referenciais que ajudam a conduzir o espectador na experiência desorganizada que ela, mulher, expõe.

3) Essa dicotomia aparece ainda com mais força em Anticristo, no qual a mulher é frequentemente associada à natureza: impetuosa, caótica, desordenada - e cruel. O que talvez explique o porquê das inúmeras acusações de misoginia direcionadas a Lars von Trier, embora não as justifique. A mulher sofredora de Von Trier (seja em Dançando no escuro, Dogville ou Ondas do destino) é uma mulher que paga o preço pela própria natureza passional e que, frequentemente, busca no homem uma espécie de alicerce, de ordem que lhe suavize o caos. Essa ordem, no entanto, é sempre falha; lógicos, analíticos e racionais, os homens de Von Trier acabam por ser, na maioria das vezes, engolidos pelo universo feminino.

4) Nesse sentido, é curioso que Joe é que tenha organizado a mesa de Jerôme e ele não tenha gostado. O que - para ela - é ordem desafia a lógica dele. E, se o relato é todo a partir do ponto de vista de Joe (o que inclui, até mesmo, as inverossímeis coincidências), não seria demais pensar que as concepções de ordem de Joe e de Jerôme se encontram de tal modo desencaixadas que a tentativa de organização dela é - diante da lógica dele - uma quase desorganização. São também concepções que, embora desencaixadas, se mesclam, conforme Joe deseja ela mesma ser organizada por Jerôme e, paralelamente, conclui que é possível haver ordem até no caos. Uma afirmação questionável, já que, por enquanto, o caos da protagonista parece muito mais engolir a ordem proposta pelos personagens masculinos do que permitir, de fato, a sua entrada.

5) Quanto ao sexo enquanto mote: não são apenas as minhas expectativas que ele subverte, mas as do público em geral, ao fazer um filme sobre sexo que escapa de qualquer erotismo. Ou melhor: que não escapa, mas esgarça o erotismo até expor o seu nervo, até expor - no erotismo - tudo o que nos choca por ser parte do erotismo (ao contrário daquilo que é comumente atribuído a ele). Impossível não lembrar de Bataille e da tão falada proximidade entre erotismo e morte: "Essencialmente, o domínio do erotismo é o domínio da violência, o domínio da violação." Buscando quebrar a tão angustiante descontinuidade do ser, Joe emenda uma experiência sexual na outra, compulsivamente, como se virasse refém daquele breve instante de continuidade que Bataille tanto comenta. Ao final do filme, chega a pedir claramente que Jerôme "preencha todos os seus buracos". É inútil. "A paixão venturosa acarreta uma desordem tão violenta que a felicidade em questão, antes de ser uma felicidade cujo gozo é possível, é tão grande que é comparável ao seu oposto, o sofrimento. Sua essência é a substituição de uma descontinuidade persistente por uma continuidade maravilhosa entre dois seres. Mas essa continuidade é sobretudo sensível na angústia, na medida em que ela é inacessível, na medida em que ela é busca na impotência e na agitação." (Bataille)

6) E é na impossibilidade de preenchimento de todos os buracos que termina o volume 1, com uma Joe chorando frustrada: "Eu não sinto nada". Ao esvaziar a continuidade experimentada através do erotismo, Joe é lançada na mais crua e inescapável descontinuidade do ser, levando essa descontinuidade a um grau de intensidade ainda maior do que antes. E, do desgaste completo, o que fazer? Do completo esvaziamento? Seguir na busca obsessiva por um novo e ilusório preenchimento, provavelmente. Até que a falta vença. Outra vez.


¹ - "La petite mort", ou "a pequena morte", é a expressão curiosamente utilizada pelos franceses para denominar o orgasmo.

A Caça e a complexa palavra alheia

8/11/2013














Lançado em 2012 pelo diretor dinamarquês Thomas Vinterberg, e com Mads Mikkelsen, protagonista do seriado Hannibal, no elenco, A Caça assusta, primeiramente, pela veracidade incômoda que traz em sua trama. A história dos injustamente condenados não é recente, nem na arte nem – muito menos – na vida, mas, ainda hoje, tanto em uma esfera quanto em outra, continua a nos perturbar sempre que um novo caso aparece. No caso de A Caça, a condenação parte das palavras de uma criança que, sem ter ideia da dimensão do que diz, acaba por traçar um caminho sem volta na vida de Lucas, personagem de Mikkelsen, sentenciando-o a pagar por atos nunca cometidos. 

Antes de tal condenação, no entanto, o diretor cria, espertamente, uma atmosfera extremamente agradável na vida aparentemente pacata da cidade pequena. Todos conhecidos, ajudando uns aos outros, vivendo em uma comunidade singela e unida, na qual Lucas é situado como um personagem querido pelos outros – o que fica evidente em variadas cenas no começo do filme, como o momento em que todos vão nadar no lago ou quando bebem juntos, além de, claro, a solícita atenção que Lucas dá a Klara, filha do melhor amigo, o que, posteriormente, será interpretado como mais uma evidência contra ele. 

A pintura da realidade pré-condenação se faz necessária conforme o segundo momento do filme chega, de forma que, lentamente, acompanhamos a dissolução daquela atmosfera anterior, substituída agora por um clima de tensão e de hostilidade crescente em relação ao personagem. É interessante perceber, porém, que, embora o ponto de vista adotado durante o filme seja o de Lucas (cabendo ao espectador a identificação com o personagem, sua colocação no lugar dele e, a partir daí, o consequente incômodo que vem junto à sensação de estar sendo injustamente condenado), também temos vislumbres da perspectiva dos outros envolvidos na situação, percebendo quão igualmente frágeis são as suas posições: aos pais da criança, resta a indecisão entre acreditar no que diz a filha e acreditar no que diz o melhor amigo; e a própria Klara, em sua confusão infantil, se mostra quase que uma segunda vítima, visto que é colocada no olho do furacão. É nítido que a menina não tinha ideia do que dizia e muito menos do efeito que tal afirmação teria na vida de todos, o que torna compreensível seu dilema (não verbalizado, mas muito bem transmitido pela pequena Annika Wedderkopp) com relação a já não saber o que de fato ocorreu e o que ela própria imaginou – afinal, se a própria mãe diz que ela deve estar esquecendo o mal que lhe fizeram, o que fazer senão acreditar? 

Já nesse segundo momento, o que salta aos olhos é também a reação da população, que – diante das declarações – não espera para confirmar a culpa de Lucas, condenando-o precipitadamente e fazendo dele alvo de uma hostilidade quase ferina. A teórica calmaria da cidade é não apenas desmontada, mas desmascarada - uma cidade pacata, até que haja motivos pra não ser; civilizada, até que alguém nos acorde a selvageria; amiga, até que não mais. A necessidade humana por um bode expiatório, em quem jogar a responsabilidade por todos os pecados, se mostra aí com evidência, em cada um dos atos desnecessariamente cruéis, desde o espancamento no mercado até o assassinato da cachorra de Lucas. 

Mais do que uma trama interessante ou outro enfoque sobre a sempre discutida questão da pedofilia, A Caça assusta por ser, em sua essência, uma história universal, atemporal, plenamente viável de acontecer com qualquer um de nós. Pior: assusta não apenas por isso, mas por nos mostrar, através de uma situação extrema, como somos, em maior ou menor grau, determinados pela palavra do outro. Afinal, até que ponto conta aquilo que fizemos e que não fizemos diante da certeza alheia? Frente à completa falta de evidências, resta o tradicional "uma palavra contra a outra" – e, se uma dessas palavras (como a de uma criança) possui maior valor, por qualquer motivo que seja, cabe à outra o apagamento de sua própria verdade, verdade em si mesma inteiramente inútil já que não encontra fora de si nenhuma espécie de comprovação, muito pelo contrário. 

Nesse contexto, a cena final vem trazendo todo o peso da situação: já não é possível voltar a ser o que se era. A Lucas, resta o novo presente, a possibilidade de futuro, mas nunca sem a marca de se saber condicionado pelo outro, com tudo que esse condicionamento carrega. Em A Caça, não há diálogo possível simplesmente porque a palavra de Lucas não encontra espaço para se manifestar diante do peso que a palavra de Klara possui (e, desencadeada por ela, a palavra de uma cidade inteira). A marca irretirável acorda ao menor sinal e a cidade, depois de mostrados os dentes, já não é capaz de retomar a antiga e ilusória calmaria - não depois de já ter trazido à tona tudo que jazia sob ela. 

Por trás dos tradicionais injustiçados, o que encontramos vai muito além da decisão a respeito de qual dos lados possui a versão verdadeira dos fatos: o que os injustiçados, como Lucas, nos obrigam a enxergar – perplexos e incomodados – é precisamente a impossibilidade de se contar apenas com a própria voz para determinar o que é a verdade e, mais do que isso, a nossa inescapável condição de reféns do discurso alheio. Quando se trata de uma palavra contra a outra, às vezes a uma cabe o papel de caça e à outra o de caçador. 
 

Nossa irrealidade de cada dia

8/06/2013

















Do mesmo diretor de Swimming Pool, François Ozon, Dentro da casa (2012) segue uma premissa bastante similar à utilizada pelo francês no filme rodado em 2003. Enquanto neste, mais antigo, vemos Charlotte Rampling no papel de uma escritora cujo mergulho na própria escrita faz com que a linha entre ficção e realidade se torne cada vez mais tênue (já não sendo possível, ao final do filme, estabelecer o que de fato ocorreu e o que foi meramente imaginado durante o processo criativo), em Dentro da casa o foco deixa de ser naquele que escreve e passa a ser naquele que lê – ou, ainda melhor, na relação desenvolvida entre ambos.

Esse novo elemento, o do leitor, acaba por trazer ao roteiro questões diferentes às já tratadas em Swimming Pool (apesar do inegável diálogo entre ambas as obras). Se, ao começo do filme, vemos uma relação fria e impessoal entre um professor e um aluno, lentamente assistimos à gradual transformação desta em uma relação autor/leitor, com tudo que essa nova dinâmica acarreta. Envolvido na história narrada pelo aluno, o professor já não se prende às noções éticas para as quais, enquanto professor, deveria atentar; pelo contrário, a entrega que este protagoniza faz com que todas as fronteiras se apaguem, incluindo as que estabelecem regras comportamentais para as determinadas relações construídas socialmente.

A narrativa do jovem escritor, assim como ocorre em Swimming Pool, remete também a uma história que não se sabe se é verdadeira ou não; embora parta de personagens existentes na trama, não é possível verificar se mantém a veracidade até o fim ou se – como no caso do primeiro – acaba por se embrenhar no ficcional. Situada dentro de uma casa na qual o garoto se infiltra sob a justificativa de ajudar o amigo a estudar para as provas, é interessante perceber como o caráter voyeurístico se impõe com força em diferentes níveis: o impulso voyeur nasce com o escritor (determinado em desvendar o que se dá por trás das fachadas da família comum de classe média), atinge o professor/leitor (obcecado por terminar a história) e chega - enfim - ao espectador do próprio filme.

Nesse ponto, Ozon levanta uma questão interessante a respeito do prazer voyeurístico como um elemento importante e constitutivo da arte (tanto com relação à literatura quanto com relação ao cinema). O prazer perverso de ver sem ser visto, de se infiltrar em espaços, até então, não passíveis de infiltração, é um prazer que a gente enxerga nos olhos do menino escritor e leva um susto ao perceber que este nada mais é do que um reflexo da nossa própria perversão, enquanto leitores, enquanto espectadores e – por que não dizer? – enquanto seres humanos.

Já a antiga dicotomia ficção/realidade que tanto já foi trabalhada na literatura e no cinema se mostra aqui com menos força do que em Swimming Pool (no qual até o jogo de espelhos ou o uso de portas de vidro e cenas filmadas através da piscina pontuavam a ideia de uma impossibilidade de se determinar o que era a imagem e o que era o reflexo). Ainda assim, a questão volta para Ozon como um ponto recorrente – e, portanto, fundamental – para a relação que se constrói com a arte. “Tudo é real porque tudo é inventado”, diria Guimarães Rosa. E talvez seja essa, enfim, a premissa fundamental de ambos os filmes: uma ficção tão, ou mais, real que a própria realidade em si, pondo em cheque dois aspectos que estão longe de ser mutuamente exclusivos, mas que se entrelaçam e se invertem através da arte. Pessoa, outro escritor igualmente preocupado com tais questões, também já disse: “toda a literatura consiste num esforço para tornar a vida real”. Toda a literatura, todo o cinema; se a vida é – como afirma Bernardo Soares (ficção de Fernando Pessoa, o real, ou, quem sabe, exatamente o oposto) – “absolutamente irreal, na sua realidade directa”, o que nos resta é, de fato, buscar na arte e em sua teórica mentira a verdade que tanto nos falta.

É essa busca – sorrateira, secreta e inevitavelmente obsessiva – que motiva o jovem escritor em suas invasões voyeurísticas, que motiva o professor/leitor em suas empreitadas eticamente questionáveis e que motiva a nós – espectadores e, de certa forma, também leitores – a não interromper a narrativa que, assim como o interior da casa, nos traga a atenção e nos obriga a manter os olhos na tela, atentos à veracidade que, surpresos, encontramos ali mais do que em nós mesmos.

Me excita, porra!

3/10/2013
















Delicadamente traduzido como Me excita, droga! (ou mais espertamente adaptado para Me excita, porra!), o filme norueguês Få meg på, for faen surgiu na minha semana de forma súbita e casual. Encontrei, simpatizei, assisti. Nunca tinha visto uma produção norueguesa. E me chamou a atenção, além da capa, o tema: Alma, 15 anos de idade, sempre excitada. Tem sonhos eróticos com um menino da escola (e com deus e o mundo), moradora de uma cidade minúscula em que tudo é domínio de todos. Alma, 15 anos de idade, com um desejo gigantesco entre as mãozinhas adolescentes que ainda não descobriram bem como o segurar.

O filme tem seus pontos fracos. Beira uma certa artificialidade, se perde em vários momentos, apela para alguns clichês. Incomoda, sobretudo, a visão maniqueísta dos personagens, entregues àqueles papeis já cristalizados (e tão exaustivamente explorados) da menina invejosa que faz intrigas, a rebelde que alimenta o sonho de ir embora para uma cidade grande, além de - claro - o menino imaturo que toma atitudes imaturas em prol de sua valiosa popularidade escolar. Tudo muito exaurido e esvaziado, mas - para além dessas falhas - Få meg på, for faen acaba se revelando um daqueles filmes despretensiosos que dizem mais do que aparentam estar dizendo.

Alma, presa em seu isolamento doloroso, vítima do silêncio imposto pela mãe que não abre espaço nem sequer pra diálogo, experimenta o nascimento de uma sexualidade livre que - exatamente por nascer em meio a uma sociedade na qual a mulher não tem esse direito - passa de saudável a doentia. De libertadora a confinadora. E, afinal, não seria esse fardo carregado por Alma durante o filme inteiro, no fundo, o fardo de toda mulher? Ao contrário da maioria, no entanto, o que impressiona é a resistência de Alma em não se permitir capturar por essa repressão que parece vir de todos os lados; Alma não se rende, mesmo quando feita de Geni, não permite que transformem seu desejo em autorrecriminação, não se deixa castrar pelas convenções machistas segundo as quais a sexualidade aflorada é natural nos homens enquanto à mulher cabe o papel de princesa, pura, romântica e imaculada (e talvez resida exatamente nessa ideia o final do filme; aparentemente bobo e definitivamente fácil, o final convencional lembra que, para aqueles que não se rendem, é possível alcançar - vez ou outra - o respeito do outro, assim como a delimitação das fronteiras do próprio território).

Mesmo a escolha de se construir a narrativa em uma cidade pequena, na qual vizinhos anotam em bloquinhos os horários de entrada e saída de cada um, não parece ser gratuita: diante da sexualidade feminina, toda cidade é pequena. Todo controle é pouco, todo domínio é insuficiente. Às Almas e Genis, restam as pedradas, as fogueiras verbais, o desafio de fugir desse eterno cobrir-se enquanto o homem se descobre (em todas as possíveis dimensões do termo). Às Almas e Genis, resta esse apelo que, embora frequentemente engolido pela maioria das mulheres, é por elas gritado com fôlego escancarado: "me excita, porra!"

Amour: o que fica quando o resto vai

2/03/2013


















Amour, difícil saber o que dizer. A sensação é a de ter entrado no cinema com 22 anos e ter saído com 85. Um peso, um peso terrível, peso de realidade nua, sem maquiagens, exageros ou trilhas sonoras. Delicadamente devastador: o amor enquanto salvação e condenação simultâneas. Naufrágio compartilhado, resgate mútuo (ou, ao menos, tentativa de). O que fica quando o resto vai? No fim das contas, mesmo a morte dominando cada uma das cenas, entre silêncios e diálogos, mesmo a morte ocupando a tela inteira, o verdadeiro personagem principal não é ela, é o amor, aquele que fica camuflado, subentendido, aparecendo discretamente numa brechinha qualquer bem pequena, mas que não se permite ser vencido. Ainda que o silêncio cresça, ainda que o diálogo vá, paulatinamente, se transformando em monólogo enquanto as palavras de Anne se desmontam na própria boca... Resta o cuidado mudo, o cuidado contínuo, insistente, contra todas as circunstâncias, resistindo vivo.

Se, por um lado, é visível que a doença e a morte tornam quase impossível a sobrevivência de qualquer outra coisa (como mostrado no momento em que Georges sugere à filha que falem de outro assunto, e ela - com um rosto molhado de choro e um olhar doloridíssimo - pergunta "falar de quê?", lembrando que já não existe essa possibilidade, já não existem outros assuntos possíveis), por outro lado, fica marcada a cena terrivelmente triste e bonita em que Georges estimula Anne a cantar: "sur le pont d'Avignon, on y danse, on y danse..." Dançar sobre a ponte! Mesmo no meio dessa travessia dolorosa que é a velhice, no meio dessa ponte na qual ninguém quer pisar, na qual todos tentam inutilmente recuar, mesmo nela: continuar dançando... quase sem voz, quase sem fôlego, quase sem pernas, mas continuar dançando.

O amor: esse capturar da pomba, contra a vontade, quando se sabe que já não há mais caminhos? O travesseiro tão necessário sobre o rosto já condenado pelo tempo? Ou, ao redor do cadáver se decompondo cruamente, sozinho em uma casa de passados, a delicadeza das flores coloridas? É discretamente que Haneke (sempre tão avesso às doçuras desnecessárias) deixa transparecer essa delicadeza, feito uma fresta entre os concretos da realidade. Seco, direto, sem apelos na forma de pintar a tristeza e o afeto, não permitindo que eles escorram nenhum centímetro a mais do que deveriam. Entre o vazio dos cômodos e o vazio da trilha sonora, uma tentativa de canto, uma fala engatinhada (cada vez mais impossível), uma lembrança de música que faz o presente pesar no peito como um piano calado. Em Georges, quantas histórias ainda não contadas? Quanto de si não compartilhado? Quanto de si morrendo na morte do outro?

Por fim, quando chegam os créditos, a gente fica lá parado, tentando também não morrer junto e aceitar que - como disse uma senhora do meu lado no cinema - "é a vida". Confesso até que, no que ela disse isso, algo em mim gritou, lá do fundo dos meus pequenos 22 anos: "como assim é a vida? Não pode ser a vida!"  Mas é...  Dói tanto quanto os gemidos de Anne, mas é tão bonita quanto cada foto do antigo álbum de fotografias. E a gente dança, apesar de.