Das horas às pontes e vice-versa

7/13/2015












 



Recentemente, meu incansável hábito de defender meus filmes e livros como se fossem filhos acabou por me colocar em um debate sobre As Horas – meu filme preferido de todos os tempos, aquele que vejo algumas vezes por ano e vou correndo pegar o DVD quando o dia está ruim e eu preciso de duas horinhas em posição fetal tentando lembrar o sentido da vida. A discussão em questão, muito além da qualidade do filme, abordava um ponto que, para mim, foi ainda mais crucial: quão depressivo é As Horas? Por que um filme que parece tão pesado para todo mundo me passa uma leveza tão grande? Foi aí que percebi: eu, que adoro escrever sobre os filmes que me comovem, nunca tinha conseguido escrever sobre aquele que me comoveu acima de todos os outros.

Ironicamente, optei por escrever sobre ele no mesmo dia em que vi As pontes de Madison, outro filme igualmente triste e igualmente bonito, que me parece, de alguma forma, dialogar com certas questões que As Horas levanta. Mas o que é exatamente que une essas quatro mulheres (as três de As Horas e a Francesca de As pontes), o que faz com que os seus dramas nos toquem de tal forma?

Em um primeiro momento, o elo imediato que fiz foi entre Francesca e Laura Brown. Nas duas, a posição de dona de casa, a vida perfeitamente estruturada e um desejo por largar tudo e ir embora. A origem desse desejo e a forma como ele é conduzido, é claro, diferem – e muito – entre as duas. Laura tenta arduamente interpretar o papel da mulher tradicional, da mãe e esposa, que faz das tarefas domésticas sua especialidade, mas em momento nenhum se sente realmente pertencer àquele universo. Laura não se encaixa e se culpa por não se encaixar, chegando ao ponto de cogitar a ideia de terminar com a própria vida. Mas, levada ao limite de sua própria infelicidade, a saída acaba sendo a fuga, o abandono daquilo que não parece ser seu (o que, para os outros, será encarado como crueldade, mas, para ela, era simplesmente a única saída possível). “Viver aquilo era a morte”, ela diz ao final do filme, “eu escolhi a vida”.

Enquanto Laura é tragada para fora, cedendo à tentação ao invés de resistir a ela, Francesca faz um movimento inverso. O lugar de mãe e esposa também não era exatamente o que ela havia planejado para sua vida, mas é um lugar que ocupa bem, um lugar que ela veste de tal forma que já não consegue se dissociar dele – nem quando o amor aparece, tentando arrancá-la da vida que até então levava. As pontes de Madison é um filme sobre escolha, sobre aquele ínfimo segundo em que ela pode sair do carro e ir correndo atrás dele ou pode ficar, sobre vivenciar esse ínfimo segundo sabendo que ele vai mudar radicalmente todos os segundos e horas e anos seguintes.

Mas como não retornar, de novo, à última fala de Laura Brown em As Horas? “O que significa se arrepender quando você não tem escolha? A questão é o quanto você pode suportar.” Até que ponto uma escolha é uma escolha? Até que ponto é possível culpar Laura por ter abandonado os filhos, se a sua atitude de ir embora foi puramente a única atitude possível naquele momento? Quando está se afogando, uma pessoa é capaz de puxar outra e afogá-la junto, pelo simples instinto de salvar a si mesmo. Em certos momentos, não há escolha, há apenas o que pode ser feito.

Nas duas outras mulheres – Clarissa e Virginia – também encontramos vestígios da mesma inadequação sofrida por Laura, o mesmo desencontro entre a vida que se almeja e a vida que se vive. Virginia, envolvida com a escrita de seu livro e seus próprios diálogos interiores, tampouco ocupa com maestria o lugar de dona de casa, o lugar de esposa, a dar ordens práticas para as empregadas, controlando o cardápio da casa e gerenciando a vida doméstica, como se esperava das mulheres da época. Pelo contrário: constantemente remetida a Londres, às cidades grandes e sua movimentação, ou até mesmo aos cenários e personagens do livro que está escrevendo, Virginia – também levada ao limite de sua infelicidade – é pega pelo mesmo desejo de fuga, pela mesma escolha entre a vida e aquilo que define como sendo a morte (ou seja, a infelicidade que estava experimentando). Entre um e outro, a escolha é pela entrada no rio com as pedras nos bolsos dos vestidos.

Já Clarissa (interpretada, assim como Francesca, pela maravilhosa Meryl Streep) aparece como uma espécie de versão contemporânea da Mrs. Dalloway que Virginia escreve. Clarissa e as festas que dá para “cobrir o silêncio”, Clarissa e as flores que camuflam o cheiro da doença de Richard, Clarissa e a necessidade de falar sobre o trivial para afundar as questões mais importantes. Além de aparecer como uma Mrs. Dalloway contemporânea, Clarissa também simboliza uma espécie de ponto de encontro entre Virginia e Laura – tendo a sua vida de alguma forma entrelaçada ao livro escrito pela primeira e amorosamente ligada ao filho da segunda. É ali, no tempo de Clarissa, que se dará o diálogo em que Laura fala, pela primeira vez, sobre o abandono do marido e dos filhos, sendo também a primeira vez em que se vê diante da escolha feita anos atrás, do peso dessa escolha e tudo que se deu a partir dela.

Mas, diferindo de Virginia e Laura, Clarissa não enfrenta um momento de escolha, mas sim o momento posterior a ela. Entre a vida que poderia ter tido com Richard (seu amante da juventude) e a vida atual com Sally e a filha, fica o inquietante “e se?”, a constante sensação de que, com Richard, o trivial daria lugar a momentos incomensuráveis, a uma felicidade maior, que transcenderia o comum cotidiano de sua vida atual. Em um diálogo com a filha, Clarissa chega a relembrar um momento do passado em que havia um forte “senso de possibilidade”, momento em que ela teria pensado “esse é o começo da felicidade”, sem saber que, sim, aquela era a felicidade propriamente dita.

Assim como As pontes de Madison, também As Horas é, no fim das contas, um filme sobre escolhas. Sobre o desencaixe entre a vida que se deseja e a vida que se vive e – mais ainda – sobre se recusar a aceitar uma vida que não seja a desejada. É possível morrer, Virginia diz em certo momento (e Laura ouve e repete e concorda); é possível morrer, assim como é possível optar por outras saídas, e, seja qual for a escolha, há de se bancar o custo dela. Particularmente, entre suicídios e crises, eu me recuso a qualificar As Horas como um filme depressivo. Exatamente porque, mesmo depois de Virginia ter entrado no rio e Richard ter pulado da janela, mesmo depois do abandono e da festa transformada em enterro, mesmo depois do arrependimento e do choro no chão da cozinha, mesmo depois de tudo, existe a escolha, existe o é possível escolher. Olhar a vida no rosto, como diz Virginia, olhá-la pelo que ela é, e decidir, então, o que queremos fazer dela. Isso há de ser algum consolo. E nisso há de haver uma leveza. Insustentável, às vezes, mas também bonita.