Lars, Bataille e outras pequenas mortes¹

1/25/2014





É sempre difícil escrever sobre um filme para o qual se criou muita expectativa. Aliás, é difícil assistir a um filme para o qual se criou muita expectativa. A versão imaginada nunca bate com a versão real e as nossas projeções acabam, na maioria das vezes, se sobrepondo - em termos de preferência - à obra propriamente dita. Ninfomaníaca poderia, facilmente, ter se encaixado nessa categoria, já que eu venho antecipando o filme faz mais de um ano, mas, de alguma forma, Lars von Trier conseguiu subverter as minhas próprias projeções e me garantiu uma experiência, no mínimo, interessante. Considerando que essa é apenas a parte 1, fica difícil fazer um comentário que não seja, por essência, um semi-comentário, então prefiro falar de algumas questões soltas que me chamam a atenção ao invés de desenvolver um texto completo (o que só seria possível depois de ambos os volumes vistos).


1) Por um lado, e antes de falar do que considero mais importante, é preciso dizer que incomoda um pouco a obviedade da estrutura narrativa (cronológica, pautada por uma excessiva necessidade de imagens para ilustrar os acontecimentos, não deixando muito espaço para a imaginação do próprio espectador). Inevitável lembrar de Dogville que, mesmo apresentado em capítulos e sendo auxiliado por uma narração, desafia e exige do espectador a cada segundo, não se sujeitando, em momento algum, às saídas mais óbvias. Também as metáforas utilizadas por Seligman cansam não apenas por serem, em geral, fáceis, mas - principalmente - pela frequência das interrupções.

2) As metáforas, no entanto, acabam por desvelar o que eu enxergo como a dicotomia principal do filme (e de muitos outros filmes de Von Trier): masculino x feminino, ordem x caos. No caso de Ninfomaníaca, a associação entre a mulher e o caos e entre o homem e a ordem é afirmada em dois aspectos: as mãos de Jerôme (firmes, fortes, observadas por Joe conforme ele organiza os objetos, causando nela a vontade de ser um daqueles objetos); e os comentários que Seligman faz durante a narrativa da personagem, como se, de certa forma, tentasse colocar ordem em seu relato, criando pontos referenciais que ajudam a conduzir o espectador na experiência desorganizada que ela, mulher, expõe.

3) Essa dicotomia aparece ainda com mais força em Anticristo, no qual a mulher é frequentemente associada à natureza: impetuosa, caótica, desordenada - e cruel. O que talvez explique o porquê das inúmeras acusações de misoginia direcionadas a Lars von Trier, embora não as justifique. A mulher sofredora de Von Trier (seja em Dançando no escuro, Dogville ou Ondas do destino) é uma mulher que paga o preço pela própria natureza passional e que, frequentemente, busca no homem uma espécie de alicerce, de ordem que lhe suavize o caos. Essa ordem, no entanto, é sempre falha; lógicos, analíticos e racionais, os homens de Von Trier acabam por ser, na maioria das vezes, engolidos pelo universo feminino.

4) Nesse sentido, é curioso que Joe é que tenha organizado a mesa de Jerôme e ele não tenha gostado. O que - para ela - é ordem desafia a lógica dele. E, se o relato é todo a partir do ponto de vista de Joe (o que inclui, até mesmo, as inverossímeis coincidências), não seria demais pensar que as concepções de ordem de Joe e de Jerôme se encontram de tal modo desencaixadas que a tentativa de organização dela é - diante da lógica dele - uma quase desorganização. São também concepções que, embora desencaixadas, se mesclam, conforme Joe deseja ela mesma ser organizada por Jerôme e, paralelamente, conclui que é possível haver ordem até no caos. Uma afirmação questionável, já que, por enquanto, o caos da protagonista parece muito mais engolir a ordem proposta pelos personagens masculinos do que permitir, de fato, a sua entrada.

5) Quanto ao sexo enquanto mote: não são apenas as minhas expectativas que ele subverte, mas as do público em geral, ao fazer um filme sobre sexo que escapa de qualquer erotismo. Ou melhor: que não escapa, mas esgarça o erotismo até expor o seu nervo, até expor - no erotismo - tudo o que nos choca por ser parte do erotismo (ao contrário daquilo que é comumente atribuído a ele). Impossível não lembrar de Bataille e da tão falada proximidade entre erotismo e morte: "Essencialmente, o domínio do erotismo é o domínio da violência, o domínio da violação." Buscando quebrar a tão angustiante descontinuidade do ser, Joe emenda uma experiência sexual na outra, compulsivamente, como se virasse refém daquele breve instante de continuidade que Bataille tanto comenta. Ao final do filme, chega a pedir claramente que Jerôme "preencha todos os seus buracos". É inútil. "A paixão venturosa acarreta uma desordem tão violenta que a felicidade em questão, antes de ser uma felicidade cujo gozo é possível, é tão grande que é comparável ao seu oposto, o sofrimento. Sua essência é a substituição de uma descontinuidade persistente por uma continuidade maravilhosa entre dois seres. Mas essa continuidade é sobretudo sensível na angústia, na medida em que ela é inacessível, na medida em que ela é busca na impotência e na agitação." (Bataille)

6) E é na impossibilidade de preenchimento de todos os buracos que termina o volume 1, com uma Joe chorando frustrada: "Eu não sinto nada". Ao esvaziar a continuidade experimentada através do erotismo, Joe é lançada na mais crua e inescapável descontinuidade do ser, levando essa descontinuidade a um grau de intensidade ainda maior do que antes. E, do desgaste completo, o que fazer? Do completo esvaziamento? Seguir na busca obsessiva por um novo e ilusório preenchimento, provavelmente. Até que a falta vença. Outra vez.


¹ - "La petite mort", ou "a pequena morte", é a expressão curiosamente utilizada pelos franceses para denominar o orgasmo.