Anticristo (e a teórica misoginia de Von Trier)

10/08/2011


A polêmica que cerca Anticristo, de Lars von Trier, desde a época de seu lançamento, realmente não é gratuita. Além das cenas violentas e explícitas, o diretor também pesa a mão em simbolismos, excentricidades e - como sempre - uma certa dose de pessimismo. Os excessos garantem a divisão de opiniões entre os espectadores, mas também constroem o caráter marcante do filme. Fascinante, perturbador, incômodo, estranho, instigante, a verdade é que - ame ou odeie - Anticristo é um filme que não se esquece com facilidade.

A começar pelo prólogo, que encanta pela beleza e pela força das imagens. Câmera lenta, em preto e branco, ao som da ária Lascia qu’Io Pianga (da ópera Rinaldo, de Handel), assistimos, paralelamente, a uma cena de sexo e à morte de uma criança. O sexo mantém o casal distraído e faz com que não percebam que seu filho acordou, subiu no parapeito para brincar e caiu da janela. É a partir desse fato que o filme tem realmente seu início. Von Trier, como em outros de seus filmes, utiliza a divisão de capítulos para contar a história. Nesse caso, além do prólogo e do epílogo, são quatro: Luto, Dor, Desespero e Os Três Pedintes.

No primeiro deles, vemos a mãe em desespero pela morte de seu único filho. Dependendo de remédios, ela se encontra em um estado profundo de luto. Seu marido, por outro lado, aparenta um incrível autocontrole. Logo ele assume uma posição de médico, exercendo sua profissão como psicanalista e fazendo da própria mulher sua paciente. É interessante perceber como ele se comporta de forma fria e racional, nunca como um pai que perdeu um filho. O interesse em tratar a mulher (e até mesmo utilizá-la como um objeto de estudo) encobre a dor da perda e o coloca em uma posição superior, como aquele que estende a mão enquanto ela é a necessitada, a mais fraca, a inferior - o que, pode-se dizer, colabora com a crescente culpa que se desenvolveria nela posteriormente.

Após um início lento em que constatamos, ao mesmo tempo, a dor da mulher e a frieza racional do homem, surge a decisão que dá à história o rumo principal: ir até a floresta do Éden. E é logo após a chegada deles lá que temos o encontro com o primeiro dos bichos que depois serão considerados os três pedintes. O cervo carregando um filhote morto pendurado no próprio corpo é a perfeita representação do luto da mulher - ela que, assim como o animal, também carrega em si o peso da morte do filho.

Nesse momento já podemos ver como a natureza é retratada em seu estado mais cru, mais primitivo. A beleza é o tempo todo ofuscada pelo grotesco da vida, pela crueldade presente até mesmo nas relações entre os animais (como fica nítido na cena em que um pássaro devora um filhote). Essa visão da natureza permeia todo o filme, desde o momento em que a mulher ainda está no hospital, logo após o prólogo, e a câmera dá um lento zoom em um jarro de plantas na estante. Sob as lindas flores, é possível ver uma água suja, lotada de pequenas partículas que se tornam invisíveis se observadas de longe, mas aparecem nitidamente se nos aproximamos. Em um outro momento, diz a mulher que "a natureza é a igreja do demônio", exaltando novamente o lado cruel de tudo que é natural. Até mesmo a fotografia ajuda nesse sentido, dando à floresta um ar soturno e cru, sem belezas forçadas ou olhares otimistas. Muito pelo contrário: com o auxílio de espaços fechados e de um tom permanentemente ameaçador, o filme ganha traços viscerais, como se Von Trier forçasse o espectador a enxergar um órgão vivo, dilacerado.

O segundo dos três pedintes surge no capítulo denominado Dor e é representado por uma raposa. Essa é encontrada mordendo a própria carne em um instinto autodestrutivo que mais uma vez ilustra perfeitamente a situação da mulher. Sua fala - "O caos reina" - reafirma a natureza como sendo não-divina. O caos citado, sofrimento e morte, surge como parte natural da vida. Já no terceiro capítulo (Desespero), o animal pedinte aparece quando o homem, fugindo da mulher, entra em um buraco na terra para se esconder. Nesse ponto do filme, ele já está em contato com a natureza perversa dela, e é dentro de um buraco escuro e aparentando - inicialmente - estar morto, que surge o corvo. Por mais que o homem tente matá-lo, não consegue, a resistência do animal é impressionante. Simbolismo perfeito para a crueldade que começa a aparecer na mulher: tão inerente à humanidade e por isso tão impossível de matar; inicialmente discreta e posteriormente explícita, como se emergisse do fundo escuro de sua personalidade. O corvo apenas acorda quando se chega muito perto dele, exatamente como seu instinto maligno se manifesta: antes camuflado e, de repente, abrindo as asas.

Os três animais simbolizando a personagem traçam um claro paralelo entre ela e a natureza. Como diz o homem em uma das cenas, a natureza é tudo o que há de externo, mas também de interno. Desde o início do filme, a mulher demonstra imensa culpa pela morte do filho. E é por conta da negligência que comprova sua falha como mãe (e, por consequência, como mulher) que ela passa a associar a perversidade à natureza feminina. Influenciada também por sua tese, que estuda os muitos abusos cometidos contra mulheres ao longo dos anos, ela percebe que a mesma crueldade vista na natureza externa existe também dentro de si própria. Como na cena em que o casal viaja até a floresta e ele propõe um exercício para diminuir seu medo, induzindo-a a imaginar seu corpo se dissolvendo no verde das plantas. O que não era nítido ainda é que esse era exatamente o seu temor: essa associação, carregando a inevitável semelhança da qual ela queria fugir. Fundir-se à natureza seria abraçar também o seu lado maligno.

No capítulo seguinte, Os Três Pedintes, temos o anúncio da morte de alguém; mas o que mais choca é a cena absolutamente explícita em que a personagem se castra com uma tesoura. Esse ato, obviamente autopunitivo, demonstra também a sua culpa pelo prazer sexual que sentia durante a morte do filho. Prazer que ela procura desesperadamente ao longo do filme em uma mistura de necessidade por sentir qualquer coisa que não dor e também por se punir novamente, já que o ato sexual deixa de ser prazeroso e passa a carregar lembranças que a violentam. Não é à toa que em uma das cenas de sexo ela implora que ele a espanque.

Quando, por fim, a mulher é morta pelas mãos do marido, entramos em um epílogo que conserva todas as características do prólogo (preto e branco, a mesma música). O homem parece vivenciar um retorno à comunhão com a natureza - como se só agora ela estivesse livre do mal -, mas logo é cercado por uma multidão de mulheres sem rosto. O filme termina antes que possamos saber o que elas fazem dele, mas a simples presença resgata a idéia das muitas mulheres anônimas que, como citado pelo próprio personagem, foram mortas simplesmente por serem mulheres. Essa cena final deixa em aberto a questão do motivo pelo qual ele próprio matou a mulher: não teria sido exatamente para sufocar a natureza feminina dela?

Além dos simbolismos riquíssimos e as reflexões sobre a crueldade como parte da essência humana, Anticristo também faz diversas referências à religião. A começar pela falta de nomes dos personagens principais, listados nos créditos como Ele e Ela. Quando Homem e Mulher vão para o Éden, é impossível não lembrar automaticamente de Adão e Eva. Assim como no Cristianismo - onde o surgimento da mulher gera o surgimento do pecado e, como consequência, de todo o mal do mundo -, no filme, ela é também retratada como a fonte do mal. Por outro lado, Lars von Trier subverte os conceitos religiosos quando retrata o sofrimento e a morte como partes inerentes à natureza e não como consequências do pecado. O natural faz uma oposição ao divino e é a partir disso que ela se torna o Anticristo, a oposição de Cristo, considerando que - durante  toda a história - ela e a natureza são retratadas como sinônimos (instintivas, incontroláveis, intrinsecamente malignas). Da mesma forma, enquanto na religião cristã os três reis magos surgem com presentes para anunciar o nascimento de Cristo, aqui nós temos o surgimento de três pedintes, animais, que anunciam a morte de alguém (dela própria, o Anticristo).

E, por fim, é possível perceber na castração dela uma larga referência à opressão às mulheres dentro do Cristianismo - sempre pintadas como a fonte do pecado e do mal, acusadas de bruxaria, enforcadas e queimadas (duas mortes bastante simbólicas que, curiosamente, são as escolhidas pelo marido). Lars von Trier em momento nenhum representa a mulher como naturalmente maligna, o que ele faz é iluminar a história da humanidade, onde, em variados contextos, ela foi retratada como tal. A crítica fica nítida especialmente na culpa sentida pela personagem, que a leva a acreditar que a sua natureza feminina é de fato a responsável pela sua perversidade, chegando a desvirtuar completamente as pesquisas de sua própria tese na qual a opressão contra a mulher é evidente. Os efeitos da culpa quando relacionados a uma série de convenções (criadas a partir de teóricas verdades como as do Cristianismo) apenas camuflam o ponto de vista que Von Trier já evidenciou em vários de seus filmes: não é a natureza feminina que é perversa em sua essência, mas sim a natureza humana em geral.