Saraband, meu oitavo Bergman

2/11/2012
















Saraband foi meu oitavo Bergman. Mas quanto mais filmes eu assisto, mais percebo que esse é um diretor diante do qual é impossível se acomodar. Assistir Bergman é um susto, nunca se sabe qual vai ser o alvo do tiro, a força do soco. E é sempre um soco. Na boca do estômago. Com Saraband não foi diferente. Sendo praticamente uma continuação de Cenas de um Casamento, o filme aborda o mesmo casal, mas trinta anos após o divórcio, em um reencontro súbito e perturbador. Ao visitar Johan em sua isolada casa no interior, Marianne testemunha o relacionamento entre o ex-marido, seu filho Henrik e Karin, sua neta de 19 anos.

Explorando novamente os conflitos familiares, Bergman utiliza Anna, a mãe falecida de Karin, como o centro ao redor do qual orbitam os outros personagens. Anna não aparece em momento nenhum, apenas em fotografia, e - no entanto - funciona como uma espécie de eixo, permitindo que os personagens se desloquem até outros ângulos, interagindo sempre com essa ausência que, assim como em outros filmes de Bergman, não sai de cena nunca. Por outro lado, Anna também funciona como contraponto, um colete salva vidas meio a um oceano denso de mágoas, rancores e desamores entre os personagens. Quase idealizada, a personagem é retratada como a peça que conferia um precário equilíbrio àquelas relações conturbadas. Sem ela, a teórica ordem familiar desaba. Para um lado, a completa ausência de amor. Para outro, o excesso desvairado dele.

Brincando mais uma vez com relações que beiram o incesto, Bergman retrata através de Henrik o amor obsessivo de um pai que se torna inteiramente dependente da filha, chegando a tentar o suicídio quando ela se distancia. Henrik, por outro lado, é alvo do mais nítido desprezo por parte do pai, Johan, que chega a confessar o quanto se sentia incomodado com aquele "amor grudento" do filho. Uma relação desgastada, de um ódio doloroso nascido do amor frustrado, das expectativas infantis nunca alcançadas e necessidades que não se preencheram. Nesse ponto, o filme lembra outro do mesmo diretor, Sonata de Outono, onde a relação entre mãe e filha também é destrinchada com uma crueza quase bruta. Em ambos os casos, Bergman questiona a ideia de um teórico amor incondicional entre pais e filhos, transitando por diversas nuances que misturam sentimentos aparentemente opostos - como na cena da biblioteca, por exemplo, em que vemos no rosto de ambos os personagens toda a raiva, os desejos frustrados, o amor violento (amor que não quer ser amor e, no entanto, não consegue se transformar em outra coisa), o rancor antigo e já endurecido de cada um.

Entre os personagens de Liv Ullman e Erland Josephson percebe-se uma dinâmica semelhante. Após um divórcio trinta anos antes, Marianne e Johan conservam um pelo outro uma espécie de carinho que beira a piedade. A solidão da velhice de ambos permeia todas as cenas (lindamente representada pelos olhos tristes de Liv e a fragilidade subentendida de Erland), assim como as indagações sobre possíveis arrependimentos e o que eles poderiam ter sido caso o relacionamento tivesse tomado outro caminho. Em uma determinada cena, Marianne chora ao falar de Johan, definindo-o como uma pessoa "lamentável". Mas quando Karin pergunta se ela está chorando por Johan, ela diz que não. Está chorando por "Johan e Marianne", as duas pessoas que já não existem mais.

Com longos diálogos e aproximações de câmera que deixam os rostos dos personagens extremamente próximos, acompanhamos o lento processo de desintegração em todas as relações, a cada minuto um pouco mais desgastadas. Os quatro personagens, extremamente doloridos, passam a sensação de estarem sempre buscando algum resquício de amor, um algo ainda não contaminado pelos rancores e mágoas do passado ou por desesperos do presente (como no caso de Henrik que disfarça como "excesso de amor" o que na realidade se baseia em mera dependência e solidão). A cena lindíssima da nudez é um exemplo, mostrando - através da vulnerabilidade dos dois personagens - a tentativa de uma possível reaproximação, ressuscitando um vínculo que já não mais existia e não poderia mais existir. Os dois tentam dormir na mesma cama, mas já não cabem, a cama é estreita demais. A solidão continua no meio, atravancando o caminho e os diálogos. Como o próprio Johan define logo no início do filme ao dizer que as pessoas se separam, passam a se falar apenas pelo telefone e então vem o silêncio completo. O que ocorre também entre eles.

Com a ajuda de atuações impressionantes (especialmente a de Josephson que transmite uma fragilidade e uma amargura que o transforma em um dos personagens mais fáceis de amar, odiar e compreender, tudo ao mesmo tempo), Bergman traz mais uma vez a lenta melancolia de Morangos Silvestres, no qual a velhice se torna um passaporte para arrependimentos, memórias, solidão, sempre com a presença da morte espreitando pelos cantos. Logo no começo do filme, vemos Liv Ullman contando no relógio a passagem de 1 minuto enquanto olha nos olhos o espectador. Silêncio e Tempo mais uma vez colocados em cena, de forma crua e honesta, trazendo a uma nova dimensão esses personagens tão tristes e tão bonitos, incrivelmente humanos, cada um com suas dores de estimação e uma imensidão de contradições intraduzíveis - contradições que Bergman ousa colocar em imagens como nenhum outro cineasta.