Sobre Persona e o vazio do Outro

10/02/2011


Persona é, de todos os filmes do Bergman que eu já assisti, o mais denso, mais misterioso, mais instigante. Quase hermético, segundo alguns. Não à toa é o meu preferido. Quando assisti pela primeira vez, não entendi muita coisa. Mas havia algo no tom grave do filme, naquele preto e branco, nas expressões misteriosas de Liv Ullman, que me deixou um leve incômodo. O filme ficou me espetando até que eu encontrasse, enfim, o necessário para digeri-lo - e o que me foi necessário para que essa digestão acontecesse é um mistério que nem eu desvendei ainda. Como todo bom Bergman (ou, na minha opinião, o melhor de todos os Bergmans), o filme não deixa rastros, não dá pistas. Nada vem fácil, mastigado, nada se mostra claramente. No jogo de sombras e claridades, há sempre detalhes ocultos, como se metade da face permanecesse sempre na penumbra. Persona se mostra na mesma medida em que se oculta, instigando o espectador a se embrenhar em seus labirintos, mergulhar nos enigmas cuja resolução ele próprio mostra ser inviável.

Enquanto Alma utiliza o silêncio de Elizabeth como uma porta de entrada para o seu próprio autoconhecimento, transformando a convivência entre as duas em uma espécie de psicanálise, Elizabeth é confrontada pelo próprio dilema: como ser realmente sincera através das palavras? Como mostrar a verdadeira face em tudo que se diz? A atriz subitamente se vê interpretando personagens mesmo na vida real, conforme suas palavras não condizem com o que ela pensa ser. Dessa epifania é que surge a resolução: não falar mais. O silêncio de uma e o constante monólogo de outra formam uma dinâmica que vai gradualmente se transformando. De analisanda, Alma passa a se sentir um objeto de estudo. Revolta-se contra Elizabeth em certo momento, sente-se fascinada por ela em outro, em uma mistura de sentimentos que lembra o conceito de transferência na psicanálise.

Nesse aspecto, o filme funciona não só como uma possível reflexão sobre as relações entre paciente e analista, mas também sobre a relação entre as pessoas no geral. A identidade do Outro, esse ser misterioso que não se pode desvendar por completo, é representada pelo silêncio. E é no silêncio que se projetam os desejos e medos de Alma, pensando enxergar em Elizabeth o que ela própria deseja ou teme. 

Durante o filme também assistimos a uma lenta e crescente troca de identidades. Alma começa a se tornar um pouco mais Elizabeth e Elizabeth um pouco mais Alma, levantando questões acerca da identidade, do espaço entre o Eu e o Outro e da palavra como forma de comunicação. Afinal, a verdadeira comunicação se dá através da palavra ou do silêncio? E a incomunicabilidade, reside em qual dos dois? É no silêncio que submerge o monólogo incansável de Alma, mas ela, sendo a que fala, também não fala por quem cala? Conforme passa a ser mais Elizabeth, Alma - de certa forma - também se torna mais Alma.

Ao longo do relacionamento cheio de nuances entre as duas personagens, Bergman vai tecendo uma espécie de diálogo metalinguístico (ou monólogo metalinguístico, se não considerarmos o silêncio de Liv Ullman como uma forma de linguagem): a palavra pensando a própria palavra. Facilitando ou inviabilizando a verdadeira comunicação, à medida que é retratada como uma interpretação: quem fala, atua. Como é dito no próprio filme: "O inútil sonho de Ser. Não Parecer, mas Ser." No entanto, colocar em palavras o Ser real é inviável. "É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo", escreveu Clarice Lispector. E diante disso, a contradição: a linguagem, traço que diferencia o homem dos outros animais, é também aquilo que o restringe, que possibilita uma comunicação apenas limitada e não completa; sendo um dos pilares constituintes da identidade, a liguagem acaba por trair essa identidade.

Talvez seja possível dizer que, ao longo do incansável monólogo, Alma cause, na verdade, o esvaziamento de seu próprio discurso, caindo junto a Elizabeth no vazio (ou na imensidão) do silêncio. Só então é possível enxergar sua face, diante da incomunicabilidade, do Outro, da completa dispersão de si mesma e da consequente fusão entre as duas. Ao perceber a inutilidade da palavra dita, Alma questiona: sem linguagem, como encontrar a própria identidade? Se mesmo a linguagem trai o que somos, então como ser através da palavra sem que a palavra nos desvirtue? E, emergindo também no silêncio,  já não se pode separar a identidade de uma e a identidade de outra. Citando Clarice novamente: "As palavras me antecedem e ultrapassam, elas me tentam e me modificam, e se não tomo cuidado será tarde demais: as coisas serão ditas sem eu as ter dito." Diante da palavra que trai a não-palavra, o que nos resta é a imensa amplitude do silêncio. 

No entanto, a face que se encontra - seja a face de Elizabeth, de Alma ou a fusão de ambos os rostos, incrivelmente filmada por Bergman em uma cena - nunca é inteiramente clara. Entre luzes e sombras, um lado sempre permanece na penumbra, em um jogo de visibilidade e ocultamento que não se esgota. Assim como acontece na linguagem, onde parte dos significados permanece sob a eterna sombra dos significantes. Cabe ao espectador optar por mergulhar na proposta de Bergman, sabendo de antemão que dele não vai receber nenhuma resposta concreta ou fácil, mas sim uma bandeja cheia de angústias existencialistas e enigmas pedindo, inutilmente, para serem desvendados.