Sobre a pele que habitamos

2/11/2012
















Uma das coisas que mais me agradam em Almodóvar é a voz que ele dá a figuras tão excluídas na sociedade: gays, travestis, prostitutas... Não de uma maneira estereotipada, mas real, humana, com diversas nuances que não se preocupam em pertencer a um extremo; a orientação sexual, em Almodóvar, não é polarizada, dividida em categorias, preta ou branca. É fluida, complexa, possui diversos tons de cinza e outras muitas cores, além de esbarrar constantemente em uma certa dose de inexplicável (o que a torna completamente verossímil).

A pele que habito veio exatamente pra reafirmar essa minha impressão. Com um roteiro sensacional e surpreendente, Almodóvar - mais uma vez - propõe um atencioso estudo da sexualidade humana e da relação entre o gênero e a identidade. Afinal, até que ponto a pele que habitamos nos determina? Se o Eu só existe em sua relação com o Outro, é também certo afirmar que o Eu é, de certa forma, construído a partir do olhar do Outro, sendo esse olhar o fator determinante para a constatação da existência de um Eu. A pele que nos cobre funciona, então, exatamente como o objeto desse olhar e, portanto, um dos pilares para a nossa própria concepção de identidade. Nada melhor, aliás, do que usar o próprio termo de Almodóvar: nós habitamos nossa própria pele, visto que não somos nossa pele, mas também não podemos nos desvencilhar da obrigação de usá-la enquanto uma fachada. Aos olhos dos visitantes externos, é ela que se mostra, que se permite ver, ao contrário do morador facilmente escondido em algum cômodo fechado e escuro. É impossível ser sem habitar uma pele. Mas até que ponto a pele que habitamos é capaz de modificar nossa identidade?

Em contrapartida, a questão do gênero surge nesse filme com uma força talvez maior do que em qualquer outro do diretor. Se em outros filmes a mudança de sexo e o constante passeio entre o masculino e o feminino já eram tratados com naturalidade, nesse a questão é colocada com maior profundidade: até que ponto nós somos determinados pelo gênero a que pertencemos? Enquanto Vicente, contra a própria vontade, se torna uma mulher, é possível perguntar: a mudança teria sido apenas corporal ou, a partir de uma nova concepção da própria identidade, Vicente teria sofrido também uma mudança interna? Sua orientação sexual continuaria a mesma ou, aos poucos, a partir do olhar do Outro diante de um novo Eu, também se transformaria? Enquanto muitos transexuais se definem como alguém cuja identidade pertence a um sexo e o corpo a outro, surge também a questão da criação como um possível fator determinante. Afinal, é sabido que, para as crianças até certa idade, a diferença entre masculino e feminino é mais uma diferença como muitas outras - loiros, morenos, ruivos, brancos, negros, altos, baixos... Uma diferença que em nada altera e nada determina, apenas mais um dos muitos traços singulares encontrados na diversidade humana. No entanto, se a partir de certa idade essa diferença começa a se acentuar é devido aos diferentes tratamentos dados a meninos e meninas no processo de educação. Se fossem educadas da mesma forma, sem nenhuma espécie de referência aos conceitos de masculino e feminino, será que apresentariam tamanhas disparidades no que se refere à identidade? Ou será que, ao contrário, essas diferenças são inerentes a cada gênero e, portanto, inerentes à identidade Masculina e à identidade Feminina? É possível que a identidade seja, na realidade, neutra e apenas se deixe contaminar pelas convenções de uma sociedade que coloca um abismo entre as concepções de masculino e feminino?

Com uma trama surpreendente que chega a beirar o bizarro em certos pontos, A pele que habito é um filme extremamente envolvente, com uma linda fotografia e ótimas atuações, mas que vai muito além de um simples drama ou suspense, deixando várias questões acesas na cabeça do espectador. Nos espaços entre o Eu e o Outro, entre o Masculino e o Feminino, Almodóvar ultrapassa novamente os rótulos e polarizações, buscando nos diversos tons de cinza e outras muitas cores um olhar mais aprofundado diante da complexidade humana, sem nunca se restringir apenas ao branco ou ao preto.