A Caça e a complexa palavra alheia

8/11/2013














Lançado em 2012 pelo diretor dinamarquês Thomas Vinterberg, e com Mads Mikkelsen, protagonista do seriado Hannibal, no elenco, A Caça assusta, primeiramente, pela veracidade incômoda que traz em sua trama. A história dos injustamente condenados não é recente, nem na arte nem – muito menos – na vida, mas, ainda hoje, tanto em uma esfera quanto em outra, continua a nos perturbar sempre que um novo caso aparece. No caso de A Caça, a condenação parte das palavras de uma criança que, sem ter ideia da dimensão do que diz, acaba por traçar um caminho sem volta na vida de Lucas, personagem de Mikkelsen, sentenciando-o a pagar por atos nunca cometidos. 

Antes de tal condenação, no entanto, o diretor cria, espertamente, uma atmosfera extremamente agradável na vida aparentemente pacata da cidade pequena. Todos conhecidos, ajudando uns aos outros, vivendo em uma comunidade singela e unida, na qual Lucas é situado como um personagem querido pelos outros – o que fica evidente em variadas cenas no começo do filme, como o momento em que todos vão nadar no lago ou quando bebem juntos, além de, claro, a solícita atenção que Lucas dá a Klara, filha do melhor amigo, o que, posteriormente, será interpretado como mais uma evidência contra ele. 

A pintura da realidade pré-condenação se faz necessária conforme o segundo momento do filme chega, de forma que, lentamente, acompanhamos a dissolução daquela atmosfera anterior, substituída agora por um clima de tensão e de hostilidade crescente em relação ao personagem. É interessante perceber, porém, que, embora o ponto de vista adotado durante o filme seja o de Lucas (cabendo ao espectador a identificação com o personagem, sua colocação no lugar dele e, a partir daí, o consequente incômodo que vem junto à sensação de estar sendo injustamente condenado), também temos vislumbres da perspectiva dos outros envolvidos na situação, percebendo quão igualmente frágeis são as suas posições: aos pais da criança, resta a indecisão entre acreditar no que diz a filha e acreditar no que diz o melhor amigo; e a própria Klara, em sua confusão infantil, se mostra quase que uma segunda vítima, visto que é colocada no olho do furacão. É nítido que a menina não tinha ideia do que dizia e muito menos do efeito que tal afirmação teria na vida de todos, o que torna compreensível seu dilema (não verbalizado, mas muito bem transmitido pela pequena Annika Wedderkopp) com relação a já não saber o que de fato ocorreu e o que ela própria imaginou – afinal, se a própria mãe diz que ela deve estar esquecendo o mal que lhe fizeram, o que fazer senão acreditar? 

Já nesse segundo momento, o que salta aos olhos é também a reação da população, que – diante das declarações – não espera para confirmar a culpa de Lucas, condenando-o precipitadamente e fazendo dele alvo de uma hostilidade quase ferina. A teórica calmaria da cidade é não apenas desmontada, mas desmascarada - uma cidade pacata, até que haja motivos pra não ser; civilizada, até que alguém nos acorde a selvageria; amiga, até que não mais. A necessidade humana por um bode expiatório, em quem jogar a responsabilidade por todos os pecados, se mostra aí com evidência, em cada um dos atos desnecessariamente cruéis, desde o espancamento no mercado até o assassinato da cachorra de Lucas. 

Mais do que uma trama interessante ou outro enfoque sobre a sempre discutida questão da pedofilia, A Caça assusta por ser, em sua essência, uma história universal, atemporal, plenamente viável de acontecer com qualquer um de nós. Pior: assusta não apenas por isso, mas por nos mostrar, através de uma situação extrema, como somos, em maior ou menor grau, determinados pela palavra do outro. Afinal, até que ponto conta aquilo que fizemos e que não fizemos diante da certeza alheia? Frente à completa falta de evidências, resta o tradicional "uma palavra contra a outra" – e, se uma dessas palavras (como a de uma criança) possui maior valor, por qualquer motivo que seja, cabe à outra o apagamento de sua própria verdade, verdade em si mesma inteiramente inútil já que não encontra fora de si nenhuma espécie de comprovação, muito pelo contrário. 

Nesse contexto, a cena final vem trazendo todo o peso da situação: já não é possível voltar a ser o que se era. A Lucas, resta o novo presente, a possibilidade de futuro, mas nunca sem a marca de se saber condicionado pelo outro, com tudo que esse condicionamento carrega. Em A Caça, não há diálogo possível simplesmente porque a palavra de Lucas não encontra espaço para se manifestar diante do peso que a palavra de Klara possui (e, desencadeada por ela, a palavra de uma cidade inteira). A marca irretirável acorda ao menor sinal e a cidade, depois de mostrados os dentes, já não é capaz de retomar a antiga e ilusória calmaria - não depois de já ter trazido à tona tudo que jazia sob ela. 

Por trás dos tradicionais injustiçados, o que encontramos vai muito além da decisão a respeito de qual dos lados possui a versão verdadeira dos fatos: o que os injustiçados, como Lucas, nos obrigam a enxergar – perplexos e incomodados – é precisamente a impossibilidade de se contar apenas com a própria voz para determinar o que é a verdade e, mais do que isso, a nossa inescapável condição de reféns do discurso alheio. Quando se trata de uma palavra contra a outra, às vezes a uma cabe o papel de caça e à outra o de caçador.