Nossa irrealidade de cada dia

8/06/2013

















Do mesmo diretor de Swimming Pool, François Ozon, Dentro da casa (2012) segue uma premissa bastante similar à utilizada pelo francês no filme rodado em 2003. Enquanto neste, mais antigo, vemos Charlotte Rampling no papel de uma escritora cujo mergulho na própria escrita faz com que a linha entre ficção e realidade se torne cada vez mais tênue (já não sendo possível, ao final do filme, estabelecer o que de fato ocorreu e o que foi meramente imaginado durante o processo criativo), em Dentro da casa o foco deixa de ser naquele que escreve e passa a ser naquele que lê – ou, ainda melhor, na relação desenvolvida entre ambos.

Esse novo elemento, o do leitor, acaba por trazer ao roteiro questões diferentes às já tratadas em Swimming Pool (apesar do inegável diálogo entre ambas as obras). Se, ao começo do filme, vemos uma relação fria e impessoal entre um professor e um aluno, lentamente assistimos à gradual transformação desta em uma relação autor/leitor, com tudo que essa nova dinâmica acarreta. Envolvido na história narrada pelo aluno, o professor já não se prende às noções éticas para as quais, enquanto professor, deveria atentar; pelo contrário, a entrega que este protagoniza faz com que todas as fronteiras se apaguem, incluindo as que estabelecem regras comportamentais para as determinadas relações construídas socialmente.

A narrativa do jovem escritor, assim como ocorre em Swimming Pool, remete também a uma história que não se sabe se é verdadeira ou não; embora parta de personagens existentes na trama, não é possível verificar se mantém a veracidade até o fim ou se – como no caso do primeiro – acaba por se embrenhar no ficcional. Situada dentro de uma casa na qual o garoto se infiltra sob a justificativa de ajudar o amigo a estudar para as provas, é interessante perceber como o caráter voyeurístico se impõe com força em diferentes níveis: o impulso voyeur nasce com o escritor (determinado em desvendar o que se dá por trás das fachadas da família comum de classe média), atinge o professor/leitor (obcecado por terminar a história) e chega - enfim - ao espectador do próprio filme.

Nesse ponto, Ozon levanta uma questão interessante a respeito do prazer voyeurístico como um elemento importante e constitutivo da arte (tanto com relação à literatura quanto com relação ao cinema). O prazer perverso de ver sem ser visto, de se infiltrar em espaços, até então, não passíveis de infiltração, é um prazer que a gente enxerga nos olhos do menino escritor e leva um susto ao perceber que este nada mais é do que um reflexo da nossa própria perversão, enquanto leitores, enquanto espectadores e – por que não dizer? – enquanto seres humanos.

Já a antiga dicotomia ficção/realidade que tanto já foi trabalhada na literatura e no cinema se mostra aqui com menos força do que em Swimming Pool (no qual até o jogo de espelhos ou o uso de portas de vidro e cenas filmadas através da piscina pontuavam a ideia de uma impossibilidade de se determinar o que era a imagem e o que era o reflexo). Ainda assim, a questão volta para Ozon como um ponto recorrente – e, portanto, fundamental – para a relação que se constrói com a arte. “Tudo é real porque tudo é inventado”, diria Guimarães Rosa. E talvez seja essa, enfim, a premissa fundamental de ambos os filmes: uma ficção tão, ou mais, real que a própria realidade em si, pondo em cheque dois aspectos que estão longe de ser mutuamente exclusivos, mas que se entrelaçam e se invertem através da arte. Pessoa, outro escritor igualmente preocupado com tais questões, também já disse: “toda a literatura consiste num esforço para tornar a vida real”. Toda a literatura, todo o cinema; se a vida é – como afirma Bernardo Soares (ficção de Fernando Pessoa, o real, ou, quem sabe, exatamente o oposto) – “absolutamente irreal, na sua realidade directa”, o que nos resta é, de fato, buscar na arte e em sua teórica mentira a verdade que tanto nos falta.

É essa busca – sorrateira, secreta e inevitavelmente obsessiva – que motiva o jovem escritor em suas invasões voyeurísticas, que motiva o professor/leitor em suas empreitadas eticamente questionáveis e que motiva a nós – espectadores e, de certa forma, também leitores – a não interromper a narrativa que, assim como o interior da casa, nos traga a atenção e nos obriga a manter os olhos na tela, atentos à veracidade que, surpresos, encontramos ali mais do que em nós mesmos.